Pensar a liberdade pela esquerda
Nova edição de "Um ensaio sobre a libertação", de Herbert Marcuse, está disponível na livraria Celia Sánchez
A Associação Cultural José Martí da Baixada Santista fez o lançamento no dia 7 de junho do livro Um ensaio sobre a libertação, do pensador alemão Herbert Marcuse (1898-1979), durante o debate Ontem e hoje: a universidade e as lutas sociais, com a presença de ativistas e acadêmicos. Entre eles, estava o filósofo Silvio Carneiro, da Universidade Federal do ABC, organizador da coleção Grande Recusa, que reapresenta a obra de Marcuse no Brasil com novas traduções e apresentações de seu pensamento. Um ensaio sobre a libertação é o primeiro volume do projeto.
Lançado pela Editora Filosófica Politeia, o livro tem tradução de Humberto do Amaral, prefácio de Wolfgang Leo Maar, projeto gráfico de Juliano Bonamigo, e revisão e notas de Silvio Carneiro e Juliano Bonamigo. A livraria Celia Sánchez, da José Martí, conta com exemplares da obra.
Em tempos de criação da Frente Parlamentar Conservadora da Liberdade, Silvio Carneiro fala em entrevista para a newsletter da José Martí sobre a ideia de liberdade na obra de Marcuse, entre outros temas:
Na apresentação, você alerta para que o leitor que vá ler Marcuse hoje não caia em uma nostalgia dos anos 60 em relação ao pensador alemão, pop no período, mas que, em seguida, parece ter sido deixado de lado. O que diz essa retomada de Marcuse?
De fato, temos essa história da recepção de Marcuse no Brasil e no mundo. Nos anos 1960, a tradução de seus livros era quase imediata à sua publicação original – o que rendeu, por vezes, até em traduções problemáticas (que esperamos evitar agora), mas com o valor de disponibilizar quase que imediatamente seu pensamento. Nos anos 1970, contudo, parece que seu nome já não circulava tanto em nossas estantes. Na famosa coleção de divulgação de filosofia Os pensadores (vendida em bancas de jornais em plena Ditadura!), o volume da Escola de Frankfurt conta com Adorno, Benjamin, Horkheimer e Habermas sem a presença de Marcuse na publicação. Todos importantes, claro, mas esta ausência é incômoda. Efeitos da ditadura? Preconceito acadêmico? A meu ver, isso diz muito da academia brasileira, que em geral teme esse vínculo entre militância e intelectualidade, ou práxis e teoria – duplo que está sempre presente em Marcuse (e Um ensaio sobre a libertação é um bom exemplo desse esforço).
Em tempos mais atuais, é comum o discurso que valoriza o poder de síntese de Marcuse sobre os grandes sistemas filosóficos. Razão e Revolução (1941), que trata de uma revisão bibliográfica que Marcuse faz sobre o Idealismo alemão e seus destinos, é considerado até hoje um grande livro introdutório para quem se interessar por Hegel. Valoriza-se, portanto, o Marcuse scholar. Mas o mesmo não acontece quando Marcuse passa a fazer seus diagnósticos de época, sempre atento para os conflitos de seu tempo, sempre aberto para as lutas e potências de transformação social. Em geral, isso é tratado como utópico e com pouca densidade filosófica. A academia perde muito em deixar de lado o pensamento marcuseano como uma base para reflexão de suas práticas e críticas. Por sorte, o caso brasileiro tem a curiosidade de recebê-lo em outras vias: em parte, mais conhecida, pelo movimento da contracultura (numa leitura talvez apressada, porém viva de sua obra) e, um pouco menos conhecida, nas leituras da teologia da libertação e seus próximos – como Paulo Freire e Rubem Alves. Nos anos 1990, uma nova leva de traduções de seus textos (em especial da juventude) gera uma retomada nos meios acadêmicos, recuperando elementos que ficaram lá guardados. A academia saiu em atraso, quando a meu ver, os movimentos políticos de cultura saem em vantagem nessa leitura. Estamos retomando Marcuse com essa coleção, mas atentos a esse histórico de sua recepção brasileira. Todavia, vale a pena a provocação, que publicamos na introdução de nossa coleção, feita por Angela Davis, uma das mais famosas alunas e colegas de Marcuse: devemos explorar terrenos que o próprio Marcuse jamais imaginou. Ou seja, não se trata de canonizá-lo, mas reconhecer seu potencial para hoje. Em especial no Brasil, quando o horizonte democrático é bastante rebaixado, com catástrofes sociais e ecológicas de larga medida no cenário, momento em que o viés de luta inspirado em Marcuse é fundamental.
Dizem que no momento é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Pensei nisso ao refletir sobre a escolha da expressão "A Grande Recusa" como nome da coleção. Seria uma forma de quebrar essa inevitabilidade?
Essa segunda pergunta tem a ver com o que disse ao fim da anterior. A Grande Recusa marcuseana tem muito a ver com essa frase que circula nas falas de Fredric Jameson, Slavoj Zizek e Mark Fischer: imaginar o fim do mundo e não tanto imaginar uma mudança no modo como reproduzimos nossa sociedade: o capitalismo. Parece desesperador que vivemos crises e mais crises do capital sem nos perguntarmos por seus motivos de fundo: o regime de mercadorias que sustenta nossos sonhos, a propriedade privada que parece garantir nossa segurança etc. A Grande Recusa é um conceito que suspende radicalmente nossas certezas. Ela não é apenas o niilismo que rejeita o Sistema (seja lá o que isso queira dizer). Vivemos isso: a nova direita vive de se dizer como antissistema, negando aquilo que de fato é. A Grande Recusa nos convida para outro movimento: uma negação que proporcione um salto de qualidade em nossas vidas, não apenas material, mas também em nossas experiências sensíveis e privadas, nossas vidas amorosas, nossa solidariedade com aquilo que desconhecemos. A Grande Recusa tem a ver com negar o modo repressivo com que fomos educados: o fascista, o racista, o machista que existe em cada um de nós. E nisso é uma recusa que, ao negar, possibilita um novo ciclo de vida: como vamos produzir algo diferente de uma vida reduzida e fragmentada das mercadorias? Que modelos políticos podemos gerar para uma democracia radical e efetiva? É a abertura utópico-crítica que a Grande Recusa exercita. Para a Grande Recusa, sem tirar o perigo que representam, as catástrofes sociais e o horizonte político de expectativa rebaixada não devem ser vistos apenas como um sinal de fim dos tempos, como um apocalipse – tal como ronda o imaginário político da extrema direita conservadora. A Grande Recusa é um Não que possibilita a experiência rara de sermos livres. Ao negar jogar o jogo jogado, que jogo passamos a jogar? Eis o desafio que este conceito de Marcuse nos provoca.
A ideia de liberdade tem sido capturada pela extrema direita e reduzida a uma liberdade de se fazer o que quiser, insultar, violentar, matar... Qual a importância de o marxismo lutar pelo significado de liberdade?
Gostaria de começar a resposta dizendo um ponto importante: Marcuse é um marxista interessante. O marxismo soviético (alinhado à linha dura de Stalin) garante que ele é um agente da CIA que deturpa o marxismo e não vê como essencial a luta de classes. Já a direita caracteriza Marcuse como um perverso ideólogo do marxismo cultural. Mas e Marcuse, o que de fato é? É verdade que sua luta e seu pensamento são dedicados a uma transformação radical da sociedade. Isso significa dizer que procura romper a farsa das lutas sociais equilibradas em um “sistema de oposições integradas”. Essa ideia é o que ronda o livro de Marcuse, talvez um dos mais famosos, O homem unidimensional (curiosamente publicado em 1964, quando aqui vivíamos anos de chumbo). Ele vivia nos Estados Unidos e reconhecia certa integração da classe operária estadunidense ao American Way of Life, o que significava não apenas viver no consumo de bugigangas, mas também apoiar o sistema e suas guerras. Marcuse via que os estudantes – em comunicação com os jovens trabalhadores – davam nova tonalidade às lutas sociais. Tirava a luta capital versus trabalho de um mero sistema de negociação que dita quem perde mais, ou que garante uma parcela de direitos a uma parcela operária (branca) à custa das demais colônias (como o Vietnã) e guetos (bairros negros) que ardiam em chamas. Isso nunca significou largar a perspectiva de luta de classe, mas perceber – como o Maio de 1968 francês, as lutas decoloniais e o movimento negro ensinaram – que a interseccionalidade das lutas é explosiva.
Ter essa visão ajuda a entender bastante o regime de liberdades que Marcuse ajuda a criticar. Pois, gostaria de insistir, é pobre nomear o que vivemos hoje como “polarização”. Esse termo ajuda a manter fantasmas ideológicos que restringem nossos processos de libertação: a luta do bem contra o mal, a preservação a todo custo das migalhas democráticas sob o receio – real – do retorno da barbárie ao poder. Acredito que a polarização restringe pensarmos algo além dessa unidimensionalidade que impera em nossas lutas políticas. A esquerda deve reconhecer seus projetos mais ousados de emancipação (mesmo que com críticas) – tal como a erradicação do analfabetismo, a conquista de direitos do trabalho, uma economia digna que valorize a vida. Peças como essas são inegociáveis e não cabem em qualquer defesa da governabilidade. A unidimensionalidade de Marcuse leva a essa reflexão: o quanto estamos deixando de lado as forças que realmente procuram transformar o status quo. Essa é a liberdade que Marcuse defende (e que acompanha outro valor importante: a igualdade social que conseguimos propiciar tendo em vista os saltos técnicos e políticos que alcançamos). Trata-se de uma liberdade que não se esvazia, porque não é falar sem mediação (isto é, fazer associações livres, puro fluxo do pensamento que, muitas vezes, transforma-se em violência social, matéria que mais encontramos hoje em dia nas ruas e nas redes sociais). Há que se ter intolerância ao intolerável! – diz Marcuse em um texto de 1965, Tolerância repressiva. Esse exercício de liberdade não é fazer valer apenas o que ele próprio pensa, não dar chance ao contraditório. De outro modo, Marcuse propõe inviabilizar qualquer voz pública a discursos fascistas que, sabemos, são contrários a qualquer projeto civilizatório. É intolerável um comandante da PM ser condecorado com altos cargos por matar jovens negros e negras na periferia. É intolerável que se abra margem para discutir o direito das mulheres por seu próprio corpo. Marcuse se opõe portanto a um exercício da liberdade de matar, de aniquilar o outro. De outro modo, o que passa a valer para Marcuse é uma liberdade concreta, baseada naquilo que ainda não está aí, mas que se encontra presente na nossa necessidade diária: comer, dançar, criar. Um ensaio sobre a libertação acompanha essa ideia: um exercício detido sobre as práticas de libertação existentes naquele período cujas potências valem para hoje. Olhar esse livro a partir de hoje talvez propicie um encontro feliz e necessário, erótico nos termos marcuseanos, de potências que certamente auxiliam a ampliar um horizonte mais largo de expectativas futuras.
Uma palavrinha sobre a atividade na José Martí.
O debate fez parte da atividade de greve das universidades e institutos federais, convidando as pessoas a pensarem sobre a “Universidade e as lutas sociais: ontem e hoje”. Foi um momento propício, pois o ensaio de Herbert Marcuse conversa com essa articulação necessária que faz a academia dialogar com as ruas. Iniciamos o debate com uma breve apresentação do livro Um Ensaio sobre a libertação. Em seguida, Luizinho Barbosa (Diálogo e Ação Petista) recuperou o histórico de lutas sociais que trouxeram o projeto de universidade pública para a Baixada Santista. Recuperou histórias do Movimento pela Universidade Pública e o que se projetava quando na Baixada Santista pouco se falava de uma instituição pública de ensino superior na região. A professora Jaquelina Imbrizi (Unifesp-BS) apresentou uma reflexão sobre as rodas de sonhos, projeto de extensão e pesquisa que realiza na universidade. Recuperou assim as perspectivas de uma universidade capaz de acolher um corpo de estudantes diverso e enfrentar as dificuldades sociais assim como aberto para a criação de lutas sociais. Ao fim, Débora da Silva, representante do movimento social Mães de Maio, articulou as experiências das lutas sociais com a conquista de seu lugar na academia como pesquisadora, mediante o projeto de extensão que visa apurar e criticar os crimes do Estado. O evento abriu ao público que pode contribuir com suas ideias e percepções.
Sobre o autor
Herbert Marcuse (1898-1979) foi um filósofo, crítico social e teórico da política. Ficou conhecido por suas intervenções no Maio de 1968. Sua participação na Escola de Frankfurt desde os anos 1930 reflete críticas centrais aos vínculos entre autoritarismo e capitalismo. É autor de Eros e civilização (1955) e O homem unidimensional (1964), Marcuse nos desafia a pensar os limites da política e a retomada de um horizonte utópico transformador. Abaixo, trecho do prefácio de Wolfgang Leo Maar:
“Para Marcuse, libertação é tornar-se livre da coação com que a sociedade capitalista a todos constrange com o objetivo primordial da acumulação de valor e suas consequências por demais conhecidas. Será que a humanidade não consegue satisfazer suas necessidades sem gerar desigualdade, miséria, opressão e barbárie? Barbárie que ocorre justamente quando os homens praticam uns com os outros a violência que lhes é imposta pela sociedade repressora em que se converteu a ordem capitalista.
Este livro tem importância dupla: política e teórica. Política, porque chega num momento muito oportuno em que demonstra sua grande atualidade: a defesa da liberdade hoje cada vez mais rara, em nexo com igualdade, solidariedade, cooperação e felicidade num outro projeto de sociedade. Nunca se falou tanto em liberdade e nunca ela foi tão descaracterizada, vilipendiada e sequestrada num mundo dominado pelo processo de acumulação capitalista, ao qual devemos servir e que não temos a liberdade de criticar e substituir. Eis o verdadeiro caminho da servidão!
O livro confronta a não-liberdade, o simulacro apresentado como liberdade, a dos (neo)liberais apoiados em Mises, Hayek, Friedman etc. Os liberais aprisionam a liberdade como livre exploração e expropriação pela razão econômica. Impregnam mulheres e homens com a obrigação de produzir excedente e com o individualismo do culto ao mérito pessoal, numa ordem social repressora — inclusive fascista — que os apropriadores do excedente pretendem imutável. Marcuse cita o próprio Mises como exemplo, que afirma: ‘o capitalismo é a única ordem possível das relações sociais. […] o fascismo e todas as orientações ditatoriais semelhantes […] salvaram na atualidade a formação civilizatória européia’.”