Companhia Docas se aliou à ditadura para monitorar funcionários no Porto de Santos
Leia matéria da Agência Pública; assunto é tema de encontro na Martí nesse sábado (19)
A José Martí inicia neste sábado (19) a série de encontros A Pauta é a Imprensa, com o jornalista Marcelo Oliveira, que participou da série de reportagens da Agência Pública sobre o envolvimento de empresas com a ditadura. O encontro será a partir das 19 horas, na sede da associação, na Rua Sergipe, n° 15, Casa 2, Gonzaga em Santos.
Saiba mais sobre o convidado e a série em https://josemarticultural.substack.com/p/mpf-investiga-envolvimento-de-empresas; abaixo a newsletter reproduz a reportagem da Agência Pública sobre a Companhia Docas de Santos publicada em 31 de maio e assinada pelo repórter Dyepeson Martins.
Companhia Docas se aliou à ditadura para monitorar funcionários no Porto de Santos
Documentos obtidos com exclusividade pela Agência Pública revelam a relação da empresa com o DOPS na repressão aos trabalhadores; original em https://apublica.org/2023/05/companhia-de-docas-se-aliou-a-ditadura-para-monitorar-funcionarios-no-porto-de-santos/
No Porto de Santos, uma embarcação da Marinha se tornou também um símbolo da violência da ditadura militar: o navio-prisão Raul Soares, que atracou nas docas em 24 de abril de 1964, menos de um mês depois de os militares tomarem o poder. O local serviu de espaço para torturas físicas e psicológicas. Os presos ficavam incomunicáveis e viviam em condições insalubres, sem acesso a banheiros e alimentação adequada.
Foi lá que Ademar dos Santos, conhecido como “Ademarzinho”, ficou detido. Ele, um ex-eletrotécnico da Companhia Docas de Santos (CDS), conta que realizava as necessidades fisiológicas em frente a um guarda armado com metralhadora, era obrigado a limpar as latrinas e chegava a ficar quase 12 horas em interrogatórios. “Não podia dormir”.
Segundo Ademarzinho, o motivo da prisão foram suas relações políticas e sindicais. “Uma foto minha em um jornal, na terceira fila de um evento político no Rio de Janeiro, onde se encontrava o cabo José Anselmo, que se envolveu em luta armada, foi um dos motivos alegados para a minha prisão. […] Queriam saber qual era a ‘missão’ que o partido comunista tinha dado para mim”, contou o ex-sindicalista ao Diário do Litoral, em 2013. Ele tinha 80 anos à época da entrevista.
Além de ser o local que abrigou o navio-prisão da ditadura, a Companhia Docas de Santos também teria atuado ativamente a favor do regime e contra os perseguidos pelos militares, revelam documentos acessados com exclusividade pela Agência Pública.
Um deles, de 14 de março de 1965 (um ano após o golpe), traz uma ordem direta da Docas aos seus funcionários: cessar qualquer coleta de doações às famílias de trabalhadores presos ou demitidos pela empresa. A ordem veio de cima e dos militares, da Capitania dos Portos, da Marinha do Brasil. Na época, os operários buscavam dinheiro para o básico, como alimentação e despesas da casa, comprometidas pela ausência de salário e dificuldades para retornar ao mercado de trabalho.
“Ultimamente vários elementos sindicalistas, principalmente nos dias de pagamento, faziam correr listas angariando fundos sob o pretexto de auxílio àqueles que haviam sido demitidos dos empregos ou presos. Agora o Sr. Capitão dos Portos do Estado de São Paulo, capitão do Mar de Guerra Roberto Coutinho Coimbra, vem de baixar a seguinte circular coibindo tal prática”, informava o documento. Quatro anos depois, em 1969, Roberto Coutinho foi empossado presidente da Coordenação dos Serviços Portuários de Santos, que funcionava na Docas.
A ordem aos funcionários, apurou a Pública, foi uma dentre várias ações para fragilizar a atuação sindical diante da repressão no litoral santista — cenário de torturas, perseguições e violações de direitos trabalhistas. Boa parte das prisões ocorriam a partir de monitoramentos realizados pela CDS em parceria com os militares, mostram os documentos. Um ambiente de “terror”, assim narram alguns ex-funcionários da Companhia. A reportagem analisou centenas de relatórios que revelam como os doqueiros ou trabalhadores de capatazia — assim eram divididos de acordo com o tipo de contrato — foram monitorados e classificados como criminosos.
A empresa se manteve no monopólio das operações por 94 anos até deixar a concessão em 1980, quando o Governo Federal criou a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp).
Os documentos são parte da pesquisa “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, realizada por 55 pesquisadores e conduzida pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O projeto é uma parceria com o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo.
Docas teria atuado junto ao DOPS para perseguir “subversivos”
Para chegar aos “subversivos”, a Docas teria o apoio do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), usado pela ditadura na repressão a movimentos sociais, políticos e sindicais. A troca de informações sobre a vida dos funcionários intensificou-se a partir da criação do Departamento de Vigilância Interna (DVI), em 27 de janeiro de 1966, no governo de Castelo Branco. A CDS, segundo o relatório da Unifesp, utilizava a estrutura do DVI para visitar casas, investigar as vidas pessoais e os comportamentos dos trabalhadores. Eles teriam sido enquadrados em crimes que não cometeram.
Inicialmente, o DVI surgiu como órgão interno com a função de garantir a segurança das mercadorias armazenadas nos depósitos. Gradualmente, no entanto, tornou-se uma unidade de repressão, sendo constituída por agentes pagos pela concessionária. Na época do regime militar, trabalhavam por lá quase 14 mil pessoas.
Havia resistência mesmo com o intenso monitoramento. Um mês após a criação do DVI, funcionários mantinham a “Operação Tartaruga” para protelar e comprometer o andamento dos trabalhos. Como consequência, a Capitania dos Portos interviu com um Inquérito Policial Militar (IPM). Os IPMs eram de iniciativa das Forças Armadas, mas teriam contado com a cooperação ativa do DVI. O relatório reservado nº 29, de 18 de fevereiro de 1966, diz que o comandante responsável pela investigação, Jorge da Purificação, tinha função exclusivamente fiscalizadora e não interviria nos assuntos administrativos relacionados ao funcionamento do porto — a CDS permanecia à frente.
No relatório, o encarregado pelo IPM também cita a prisão de duas pessoas e a busca por um terceiro trabalhador considerado foragido. O inquérito refletiu, aponta a pesquisa da Unifesp, na criminalização e perseguição dos trabalhadores da baixada santista, acusados de crimes de subversão e contra a segurança nacional. Os indiciados neste IPM foram absolvidos ao final dos processos diante da “fragilidade das acusações, ausência de crime e desrespeito ao devido processo legal”, destacam os pesquisadores. O tempo de espera para a absolvição, porém, foi longo — os processos foram julgados somente em 1972, sete anos depois da instauração do inquérito.
“Praticamente a DVI assume a função do RH [Departamento de Recursos Humanos]. Então todas as informações dos trabalhadores que eram do RH são veiculadas para os órgãos repressivos e vice-versa. Tem centenas de listas com os nomes dos trabalhadores, passando essas informações, trocando essas informações sobre eles”, detalhou a pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Vera Lucia Vieira.